Ricardo Agreste
Como um cristão num país chamado Brasil, ao longo dos anos,
tive que me habituar a observar e identificar dois ambientes bem distintos, nos
quais a espiritualidade é exercida em nossa cultura. Um deles é o ambiente
caracterizado pela “espiritualidade das multidões”, a qual se mostra confusa e
sincrética, e diante da qual sempre me senti um tanto quanto resistente. O
outro é caracterizado pelo que chamarei, mesmo correndo o risco de ser tido
como pretensioso, de “espiritualidade dos discípulos”. Este é um modelo que
sempre me pareceu mais consciente e coerente.
É preciso reconhecer que, diante destes dois modelos de
espiritualidade, minha formação me condicionou a olhar com um perigoso desprezo
para a espiritualidade das multidões. Ao longo da caminhada cristã, por muitas
vezes, tenho ouvido que as multidões são inconstantes e utilitaristas. Elas
estão sempre em busca do milagre imediato – aquela bênção que leva à cura da
enfermidade, à solução para o problema financeiro. Fui também induzido a pensar
que a genuína espiritualidade emerge de uma relação de discipulado com Cristo,
baseada numa decisão consciente. Assim, somente a partir de uma entrega total
de nossa vida ao Senhor e um compromisso de obediência à sua voz é que podemos
experimentar a genuína espiritualidade. Por isso mesmo, precisamos tomar
cuidado com a distração gerada pelas multidões e concentrar-nos na produção
artesanal de discípulos de Cristo.
No entanto, relendo os Evangelhos, fui surpreendido, mais
uma vez, pela pessoa de Jesus e suas atitudes. Confesso que, num determinado
momento, esta surpresa tornou-se muito próxima de um sentimento de indignação
em relação a ele, ao perceber que sua postura ia na contramão de tudo quanto eu
cria e defendia. Foi quando fui surpreendido pela segunda vez; agora, contudo,
comigo mesmo, quando constatei que meus sentimentos estavam bem mais próximos
daqueles que, nos evangelhos, são chamados de fariseus e escribas do que dos
verdadeiros seguidores de Cristo.
Jesus observou as multidões e foi tomado por uma profunda
compaixão por elas, conforme os relatos de Mateus 9.36 e 15.32. Percebemos que
o Filho de Deus, apesar de saber que aqueles homens e mulheres eram muitas
vezes movidos por interesses não muito nobres – e não poucas vezes eram tomados
pelas tais tendências utilitaristas de fé –, não deixava de sentir compaixão
por eles. Muito pelo contrário; ele reconhecia que interesses difusos e
tendências pragmáticas eram decorrentes do fato de estarem cansados e aflitos,
como ovelhas sem pastor.
Os evangelhos nos apresentam um Jesus engajado no serviço às
multidões, curando aqueles que tinham necessidade, expulsando os demônios dos
que estavam oprimidos e anunciando o Evangelho do Reino como uma dádiva
estendida a todos pelo amor e pela bondade de Deus. Em alguns momentos de seu
ministério, cercado pelas multidões, o Mestre desafiou seus discípulos a não
apenas olharem para elas com compaixão, mas, seguindo seu próprio exemplo, a
servi-las. Diante disso, seus seguidores procuraram todas as formas de
dissimulação, alegando os mais variados tipos de dificuldades. No entanto, Cristo
foi enfático, ordenando que eles mesmos servissem àquelas pessoas envolvidas
pelo modelo de espiritualidade que constantemente acusamos de ser inconsistente
e utilitarista, conforme Mateus 14.15-16.
Não se trata de negar o fato de que Jesus tinha um grupo de
discípulos com o qual gastava um tempo de maior qualidade e profundidade nos
ensinamentos. Nem mesmo se pode negar que a genuína espiritualidade deve ser
construída a partir da fé consciente na pessoa de Jesus, como o Deus encarnado
que entra na história para morrer em nosso lugar. No entanto, o que se deve
questionar é todo e qualquer modelo de espiritualidade que, em nome do
discipulado com qualidade, gera discípulos que não sentem compaixão e não sabem
conviver com as multidões aflitas e exaustas.
Jesus, com a
sensibilidade do Deus que é amor e com a sabedoria daquele que é o criador do
universo, entrava em contato com o sofrimento das multidões, acolhendo-as em
suas limitações teológicas e em suas motivações utilitaristas. A partir desse
encontro de amor, fez de homens e mulheres verdadeiros discípulos! Da mesma
forma, aqueles que se afirmam seus seguidores deveriam aprender a olhar com
compaixão para as multidões e engajar-se no serviço a elas com amor e
dedicação, criando oportunidades para que todos venham a compreender quem é
Jesus e possam render-se ao seu amor. Então, alguns homens e mulheres, anônimos
nas multidões, ganharão identidade ao deixarem de ser apenas consumidores de
sua compaixão para se tornarem agentes da mesma.
Nenhum comentário:
Postar um comentário